04 July, 2006

Retorno

Estava muito longe de mim pensar na maneira como o dia de hoje acabou. Supostamente eu deveria ter vindo ontem para Évora mas surgiram outros assuntos e só pude vir hoje. Cheguei 15 minutos antes do autocarro partir, comprei o bilhete e fiquei à espera. O motorista abriu as postas do compartimento da carga e eu lá fui pôr a minha mala. Quando voltei, vi uma cara sorridente na minha direcção.
“Inês! O que fazes aqui?!”

Eu provavelmente nem teria reparado, vinha com os phones nos ouvidos. Mas lá olhei por detrás dos óculos de sol. Quando vi quem era nem me tinha em mim.

“Ana! Meu Deus!” Disse eu com uma alegria enorme. “Não te tinha visto!”
“Pois eu já te tinha chamado, mas como ias com isso nos ouvidos…” Disse ela à laia de reprimenda.
“Desculpa.” Respondi eu sinceramente. “Mas tu olha, quando me vires assim meio distraída, por favor diz-me algo.”
“Ok.”
“Vais para Évora, não?”
“Sim, vim hoje para Lisboa e ainda vou hoje.”
“Olha, qual é o teu número?”
“O 14. Tu?”
“25. Ah deixa lá, sentamo-nos no mesmo sítio.” Isto com o autocarro cheio de gente… Tivemos sorte que ninguém nos foi reclamar o lugar. Começámos na conversa. A Ana é uma amiga de longa data. Crescemos práticamente juntas e andámos sempre juntas desde a primária até ao 9º ano. Depois mudámos de escola, mas nunca perdemos o contacto. Até eu ir para Lisboa. Ainda me perguntam porque é que odeio Lisboa… Eu respondo: Lisboa fez-me perder tudo aquilo que eu tinha de melhor na vida.

Ela também estuda em Lisboa, mas é muito complicado nós arranjarmos tempo para nos encontrarmos. Ora quis o destino que fosse hoje. A Ana é minha afilhada, do crisma. Quando ela me convidou eu fiquei muito contente, porque ela nunca tinha realmente dado muita importância a essas coisas. As nossas famílias sempre se deram lindamente. Ora já estávamos no autocarro, a instalar-nos e a falar quando eu de repente tiro os óculos para falar com ela e ela fica muito espantada a olhar para mim.
“Oh Inês! O que é isso?!”
Eu, muito sinceramente, não fazia a mínima. “Onde?”
“Aí, na tua cara!”
“Ah…” Disse eu assim muito ao de leve. O piercing…
“Meu Deus! Mas… Quando o fizeste? O que disseram os teus avós?!”
“Há quase um ano. Não disseram nada de especial, só me perguntam todos os dias quando tiro daqui o prego.” Disse eu com um sorriso forçado.
“Oh meu Deus! Oh meu deus…” Era só o que ela dizia.
Lá falámos da vida e tal, exames, faculdade… Ela entretanto deixou-se dormir, cansada com certeza. Eu pus os phones e passei o resto da viagem a olhar pela janela.

Estávamos quase a chegar quando ela perguntou se eu queria que ela me levasse a casa, já que fica em caminho e ela tinha o carro estacionado no parque.
“A sério Ana, não é preciso. Os meus avós de certeza que já devem estar à espera.”
“Tudo bem. Mas olha que não era incómodo nenhum.”
“Eu sei.” Disse com um sorriso. “Mas não vale a pena. Fica para outra vez.”

Chegámos finalmente. Estava ainda muito calor, mas ela ficou ainda uns minutos comigo à espera que os meus avós chegassem. Fomos todos para perto do carro para eu pôr as malas e ela foi-lhes falar.

“Olhá Mna. Ana! Atão como vai isso?” Disse o meu avô. Seguiu-se então uma amena converseta que terminou num convite para um café.
“Eu telefono-te logo para combinar as horas, está bem? Ainda devo ir jantar a casa do Rui mas falo contigo antes.” O Rui é o namorado dela. (acho eu… não, é mesmo)
“Ok.”

22.10, ela bate à porta e entra. Sempre foi assim.
“Boa noite, pode-se entrar?” Disse com um sorriso.
“Oh menina Ana, faça favor.” Respondeu o meu avô. Ela foi-lhe falar e à minha avó também.
“Desculpa a demora, pensei que acabava mais cedo.”
“Ah, não faz mal então?” Respondi.
Mais uma amena cavaqueira com os meus avós e ela sai-se com esta.
“Oh Sr. Franco então já viu o que a nossa Inês tem ali?”
Não Ana… Ele não viu… Não viu ele senão outra coisa…
“Ai Mna. Ana, nem me diga nada.”
Escusado será dizer que durante os 5 ou mais minutos seguintes não se falou de outra coisa… Eu fiquei calada claro. Ia dizer o quê?
Resumindo e concluindo, ela basicamente disse que estava chocada por me ter visto assim e o meu avô não podia estar mais de acordo.
“Mas oh Inês, tu não achas que é assim?” Disse ela.
“Eu não acho nada, já disse. Mas se vocês estão todos assim para mim, vou já tirar o piercing!” Foi ali mesmo e guardei-o.
“Ta na ta munto melhor assim? Diga lá Mna. Ana.”
Eu só olhava para os lados e para o tecto. Não lhe disse nada.
“Mais valia não ter dito nada…Olha o que eu fui arranjar.” Disse ela. Eu abstive-me de comentários.

No carro a conversa continuou.
“Mas Inês, a sério tu não achas?”
“Acho o quê Ana?”
“Olha lá, tu porque é que tu fizeste isso?”
“Fiz o quê?”
“O piercing.”
“Porque quis.”
“Mas quiseste porquê? Tens de ter algum motivo.”
“É preciso ter motivo?”
“Uma pessoa não faz isso só porque ‘quero’. Ou é porque viu alguém, ou porque é moda.”
“Olha Ana, eu fiz porque quis e pensei no assunto seriamente. Disse para mim mesma que seria o único que faria na minha vida e fiz. Só fiz porque quis.”
“Não me digas que foi, acordaste um dia e pensaste ‘Ah hoje apetece-me fazer um piercing.’ ”
“Foi mais ou menos isso.” Disse eu assim na brincadeira. Mas ela continuava com as razões dela. Ela pôs o carro em marcha e o assunto continuou.
“Mas ouve.. Eu só disse o que disse porque nunca pensei em tal, principalmente vindo de ti.” Disse ela enquanto conduzia.
Há tantas coisas, Ana.. Tantas…
“Lembro-me de ti como a Inês que andava sempre a jogar à bola e a correr dum lado para o outro, sempre com invenções… Tu eras a nossa menina.”
Parei um momento. Senti um nó na garganta. Olhava para as minhas mãos, os dedos entrelaçavam e desentrançavam-se entre si.
“Oh Ana, mas isto não muda quem eu sou.” Respondi eu em defesa própria.
Muda sim… muda mesmo… Ela não o disse mas eu sei que foi isso que pensou.

Chegámos à gelataria. Pedimos café para as duas e uma água. O assunto continuou. Eu sem querer levo a mão à sobrancelha, um gesto que repito vezes sem conta sem me aperceber.
“Não mexas nisso.” Diz ela. “Agora não podes, tens as mãos sujas.”
“Eu pus a dita pomada antes de sairmos… é um tique.”
Felizmente a conversa tomou outros rumos e lá deixamos o prego em paz. Em vez disso ela perguntou por mim. Eu comecei a falar e as coisas retornaram ao ponto em que eu me vim embora de Évora. Contei-lhe tudo, tudo aquilo que me atormentava e tudo aquilo que me magoou e continua a magoar, a nível pessoal, familiar, tudo. Estive quase a chorar, mas não chorei. O acumular de anos tem destas coisas… Não sei o que é pior, se o piercing se a minha desastrosa vida resumida numa esplanada.
Eles já estavam a fechar, pelo que tivemos que ir embora. Agora a conversa no carro era bem diferente. O código de DaVinci, impressionante.

00.37 Ela veio pôr-me à porta. O ânimo entre nós já estava mais desanuviado.
“Então pronto, não te vou contar o filme.” Disse eu e ia começar a despedir-me quando ela disse: “Inês, tu sabes que eu não te quero magoar.”
“Eu sei…” Respondi um pouco de forma derrotada. Penso que ela reparou. Então disse:
“Olha, tenho um segredo para te contar!”
“Hã? Diz lá.”
“Não, é segredo.”
“Oh Ana, estamos só aqui as duas!”
“Segredo.”
Eu lá dei o ouvido à palmatória. Ela fez tal e qual como as crianças da primária e pôs a mão à frente, como se alguém nos estivesse a ver.
“Ficas mais bonita sem o piercing.” Sussurrou ela.
Palavra de honra, fiquei sei lá como. Ele foi arrepios, suores frios, pele de galinha, foi tudo. Não sei como não desatei a chorar ali mesmo. Depois do esforço todo que eu tive para me conter! Grrr! Olhei para o tapete do carro e depois para ela. Ela só com um sorriso. Eu só suspirei.
“Prometes que tiras isso?”
“Não sei.”
“Preciso de uma resposta.”
“Ok, vou pensar.”
“Só pensar não.”
“Está bem, se queres que te diga agora vou dormir sobre o assunto.” Disse eu já com um pé fora do carro e um sorriso.
Ela não respondeu.
“Bom, já não te incomodo mais que tu deves ter mais que fazer…” Disse eu.
“Não incomodas nada, mas eu vou ter mesmo de ir.”
“Ok, então a gente ainda se vê?”
“Se tu quiseres.”
“Vais para Lisboa quando?”
“Na sexta-feira.”
“Ok…”
“Tchau linda, porta-te bem.”
“Não sei se consigo…” Lá nos despedimos e eu fui para casa.

Sentia o peito encolher dentro de mim, mas com uma vontade enorme de rebentar. Vesti o pijama às três pancadas, fui para o quarto e fechei a porta. Senti que tudo acabava ali. Mas não acabou. Vieram as lágrimas e desde então não pararam de correr. Aquilo que eu fui, ela mostrou-me. Aquilo que eu agora não sou, nem nunca voltarei a ser, eu vi nos olhos dela. Vi também a decepção, a confusão, a condescendência, a intolerância, o porquê Inês ressaltava.. Senti-me mal, muito mal. A ponto de ter uma emése (acho que é assim; para quem não sabe, é o vómito) Senti um vazio colossal que não consigo descrever.

Sinto-me suja, gasta, podre.

Sinto-me mal. Muito mal mesmo.

Por mais lágrimas que corram, nenhuma delas será capaz de limpar a alma.

2 comments:

Anonymous said...

Oi Inês, és linda tal como és, nunca de esqueças disso. É normal que por vezes te vás a baixo e é normal por vezes falhar-mos assim é o ser humano. As pessoas tem de gostar de nós pelo que somos e não pelo que usamos. Temos de nos sentir bem connosco próprias isso é o mais importante. Nunca te esqueças que o mais importante és tu. Faz as tuas opções de vida e pensa no que realmente gostas e esquece dos outros. Sabes por vezes também me sinto assim, sinto-me frustada sem saber que rumo tomar, também exigem de mim algo que não posso dar. Para os meus pais tenho que deixar de ser a menina por mais que lhes custe, às colegas de facultade tenho que lhes lembrar que sou mais velha porque não compreendem os meus desejos que são normais na minha idade. Lembro-me de dizer que quero me comprometer e ter filhos ao que me respondem, oh Sandra só daqui a 10 anos, pois bem eu tenho mais 10 anos que voçes, portanto é normal. Sou uma mulher por mais que não se lembrem disso, por mais que o meu rosto não vos diga isso ou até que por vezes eu seja infantil para esconder o meu sofrimento. Acredita que se precisares estou aqui. Jokinhas Sandy

Anonymous said...

hmmm sadly life's a bitch you know? when you expect something good out of it it kicks you in the arse big time if you let it.

Hun, read what I will write here several times until it sinks in ok?

Her opinion doesn't count jack shit. "the tip of a horn". It doesn't change what you are. If some people judge you by the cover, THEY ARE WRONG. and most of all, you must not be hurt by their prejudgments.

You know I've been reading your blog. I started seeing a different side of you, the not so cheery one. It's strange how you can hide what you feel so well.
Dude, you're a really cool. You're the only one that read fanfics and like jrock as I do (and no that's not weird), plays the guitar... the piercing looks REALLY COOL and I'd wish I'd have to guts to do one too.

The point is, if someone is judgmental about you (I got that impression from reading this), don't start thinking "what if she's right?"... over the years you won't notice when you do that and you're confidence will be near zero (it's from experience, even my shrink says this ^^;). And there is _always_ somebody else to befriend. plenty of fish in the sea dude...;)

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